quarta-feira, 25 de novembro de 2009

o feio caso de António

O caso de António Feio, relatado num jornal de hoje, mostra como uma fonte de erros tão frequente e com consequências tão graves - e de tão fácil resolução - continua a existir e, inclusivamente, a ser motivo de um quase "orgulho de classe".

António Feio necessitava de um medicamento para os vómitos - na farmácia "tresleram" a letra do médico e deram-lhe um medicamento para a diabetes, que ainda piorou mais o seu estado, aumentando os vómitos e baixando perigosamente o açúcar. A questão é: porque é que os médicos não escrevem os medicamentos com letra de imprensa?

Um dia, tinha cerca de 15 anos, vi um filme na RTP (a única que existia) em que uma farmácia trocava um medicamento por não entender bem a caligrafia do médico, e depois o enredo era tentar descobrir o doente, já que a troca era potencialmente fatal. Depois de ver o filme (e apesar de tencionar, na altura, vir a ser advogado), jurei a mim mesmo que, se fosse médico, escreveria sempre com letra de imprensa. E assim faço há mais de 30 anos.

Há médicos que se vangloriam da sua "letra", como se fosse uma coisa formidável essa comunicação não entendível, uma forma superior de estar na vida, como despejar "epicondralgias" ou "cefaleias" para dizer coisas tão simples como "dores de estômago" ou de "dores de cabeça" - no fundo, a arrogância de dizer as coisas sem as dizer, e só ser entendido pelos "pares".

Pessoalmente, acho que o utentes deveriam ser mais exigentes, e solicitarem receitas em que entendam, eles próprios, o que lá está escrito. Era uma forma de começar a destruir o falso poder médico, que só beneficia a negligência, o erro e a má prática da Medicina.

9 comentários:

Anónimo disse...

Mas agora as receitas já são imprimidas num impressora em arial! Pelo menos no meu centro de saúde são. As do pediatra são à mão mas entende-se bem. :)

sw disse...

Muito bem, dr. Mário, gosto de o ler ;-)
Na verdade, eu propria já fiz algo semelhante: pedi ao meu médico de família se me podia clarificar a receita pois não entendia o que estava escrito. Ele virou-se para mim e disse qualquer coisa do tipo - "sou médico, queira desculpar". Como se a profissão fosse uma condição, algo imutável, como a cor dos olhos com a qual se nasce.
Mais uma vez, muito obrigada por estes "alertas".
Um abraço de rápidas melhoras.

Marta Chorão de Carvalho disse...

Olá,
Sempre ouvi o meu Pai dizer que "Senhores Doutores há muitos mas médicos existem poucos", começo a concordar com ele... Parabéns por pertencer ao Clube dos médicos.
Beijinhos com muitas saudades e as melhoras rápidas.

Supertatas disse...

sim!

Ana C. disse...

E eu sempre achei que no curso de medicina havia uma cadeira chamada: Caligrafia Ininteligível, da mesma forma que sempre imaginei os nossos agentes da autoridade a passarem no exame de Palavreado Exaustivo com nota máxima :)
Já há hospitais e centros de saúde em que as receitas têm que ser escritas a computador.

Mário disse...

A "letra de médico" (como o jargão) fazem parte de uma mentalidade em que se privilegiava manter o conhecimento entre pares, e falar, pois, em código. No caso das receitas, o código era entre os médicos e os farmacêuticos (que raramente se queixam, quando deveriam ser os primeiros a protestar, até porque serão eles a cometer erros...).

Os pacientes eram marginalizados por ambas as profissões. Aliás, é essa a razão porque muitos médicos não escrevem no Boletim de Saúde, o melhor local para os pais poderão ter acesso à informação sobre os filhos. Eu não tenho fichas no consultório, salvo raríssimas excepções. Desde há 27 anos... mas escrevo sempre no Boletim e contam-se pelos dedos de uma mão os boletins que os pais perderam, e pelos de duas mãos os que são esquecidos em casa no dia da consulta...

Não se esqueçam, contudo, que informação é poder, e partilhá-la é partilhar o poder... e ainda há muitos médicos que gostam de ouvir dizer que "o senhor doutor mandou...".

miguel disse...

O corporativismo é, de facto pior do que uma multidão de " pares" pegados à estalada. O meio termo construtiivo, seria a crítica e a auto-crítica, na base de uma reflexão constante " inter-pares".

Infelizmente esta das "caligrafias de classe" e outras que tais fazem escola e transmitem-se de geração em geração.

E , por falar em corporativismo concordo plenamente com o Sem qualquer tom de azul - ou simplesmente detestável" anterior ao que está agora: todo o oportunismo à volta da avaliação dos Professores, esquecendo, literalmente tudo o resto. Percebe-se: o " o ( quase )terramoto eleitoral deveu-se ( em grande parte) ao sentido de voto dos professores, os partidos perceberam-no e agora tentam retirar dividendos, com os sindicatos ao barulho. Então e a Educação?....Devo dizer que sou Professor.

Virginia disse...

BRAVO!

Agora sou eu que digo. Bela entrada! Excelente Entrada, mano!
Concordo inteiramente com tudo, sobretudo com a parte final. Tive de lidar com esse tipo de "arrogância" de parte duma pessoa da minha família por afinidade ( YOU know WHO) e sempre me custou ouvi-la falar de doenças e de sintomas duma maneira enfática, quando ela própria se considerava médica do povo ( e era...).
Na nossa casa de infância, felizmente, falava-se de doenças como se falava do menu para o jantar, sem sofisticações. Gripe não era influenza!!!

Pintarriscos disse...

Esta clareza de pensamentos e certa postura de outsider face às ordens institucionalizadas e às ideias pré-concebidas que o leva muitas vezes a "pôr o dedo na ferida" é uma das muitas razões porque gostamos muito de si. Um muito obrigado.

Paulo Galindro