A tragédia do Haiti desencadeou uma onda de "quero adoptar um menino do Haiti!", por esse mundo fora. Numa primeira leitura, há uma vaga de solidariedade e de altruísmo - não questiono, admiro e respeito.
No entanto, as coisas não são tão simples. Há várias questões que não podem ser ignoradas, sob pena de se torpedearem as regras, com alguns efeitos secundários nocivos:
1. por algum motivo existem normas e leis internacionais, as quais não foram feitas com leviandade, mas depois de anos e anos de estudo dos prós e contras e dos menadros e pormenores da deslocação internacional de crianças e dos seus efeitos legais e jurídicos;
2. nestas alturas de tragédias (como ocorreu quando do Tsunami de 2004), há redes de exploração comercial e sexual de crianças que se aproveitam para engordar o que é, neste momento, o 3º maior negócio ilegal do mundo, a seguir ao tráfico de armas e de droga;
3. as crianças haitianas consideradas orfãs devem ser registadas, porque pode dar-se o caso de os pais ainda estarem vivos;
4. mesmo que os pais tenham morrido, podem existir tios, avós ou outros membros da família alargada. Nem todo o Haiti sucumbiu, e a população é de 10 milhões de habitantes;
5. a comunicade haitiana tem obrigação (e fá-lo, como em Cabo Verde ou outros países que nós, arrogantemente, consideramos "sub-desenvolvidos) de cuidar das suas crianças, especialmente das mais carentes. É pena que aqui não haja essa tradição, e que só se pense em termos de família nuclear restrita;
6. as crianças do Haiti fazem parte do Haiti e este país, se se quer desenvolver, não pode pôr de lado essa força potencial. O que as autoridades e organizações internacionais têm de fazer é providenciar para que elas possam crescer... no Haiti;
7. estas crianças têm um contexto e uma circunstância muito diferente dos europeus. Duvido que haja muita gente habilitada a, de repente, recolher um haitiano e saber lidar com o stresse pós-traumático,. desenraizamento climático e cultural, linguístico, alimentar, etc.
8. há 16.000 crianças em lares portugueses, e pelo menos um terço aguarda hipóteses de adopção... que tal aproveitar a onda e organizar melhor a adopção em Portugal, criando registos, agilizando o processo, etc, etc?
Não quero ser cínico, mas há que ser prudente. Aliás, a UNICEF, que bem se bate pelos direitos da Criança, foi a primeira a recomendar cuidado e a observação das leis internacionais, que se forem esquecidas quando do Haiti, também o podem ser se pensarmos na Suazilândia, Congo, Rwanda, Angola, Brasil, etc, etc, etc, etc...
A adopção é feita para assegurar o melhor interesse das crianças, não para defender apenas os interesses dos adoptantes ou por comiseração, passa-culpas ou outros sentimentos, que sendo legítimos, não podem ser a única razão. Uma hipótese, já muito usada, é os países funcionarem como países de acolhimento, mas não num regime de adopção, até a situação se organizar. Mas o melhor será fomentar condições localmente, por muito que custe ao nosso coração europeu, confortavelmente instalados e, embora generosos, desconhecedores dos efeitos colaterais de certas boas-vontades.