Dia de Natal - António Gedeão
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.
De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprado.
Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.
Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.
Ah!!!!!!!!!!
Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.
Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.
Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.
Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.
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4 comentários:
É um dos meus poemas preferidos do Gedeão.
Maravilhoso...daí não ter ainda comprado uma única prenda...nem enfeitado a casa, ando com vontade de um Natal diferente. Já tive um aperitivo em Leeds e não me posso queixar.
Bjo
Gedeão, quando queria, era especialmente sarcástico e cáustico. Este poema é um bom exemplo.
No entanto, decorei a casa, comprei presentes (muito selectivo, este ano, em termos das pessoas a quem mostrarei que desejo estar "presente!") e no sábado tenho 20 meninos de 5 e 6 anos num (prevê-se) animado lanche de Natal.
Vivo o Natal com uma grande intensidade, mas cada vez mais na intimidade dos que me são queridos, rejeitando a hipocrisia e a obrigação. Há mudanças que se fazem, na vida, que são irreversíveis - esta é uma delas, e faço-a com todo o gosto. Um passo para a libertação, creio!
Há dez anos, quando passei o primeiro Natal sozinho, o dia 24 à noite foi para visitar quem estava a trabalhar com crianças: a Linha "Dói-dói, trim-trim", a "Ajuda de Berço" e outras. Foi bom. Foi diferente. às vezes precisamos da solidão e o encontro com anónimos para nos reencontrarmos.
Felizmente, penso que muitas pessoas estão a rever a importância do Natal nos outros, e a inverter a linha de consumismo desmedido que caracterizou os Natais dos últimos anos. Como escreveu o Dr. Nuno Lobo Antunes num artigo que li há dias, "Este ano tem de ser, vou expulsar de volta para o gelo o Pai Natal, simpático é certo, mas que transporta consigo o pecado da gula. Afastar do cento da celebração a árvore enfeitada de presentes, e lembrar às minhas filhas que a razão do Natal é aquele sentimento que me faz olhar para elas e ter vontade de chorar".
Lamento dizer, mas após quase trinta anos de "escravidão " natalícia, a fazer ceias, tratar dos meninos, comprar prendas, ir a correr no Dia de Natal para Lx , onde todos estavam fresquinhos e não tinham de fazer 300kms por estradas horríveis - chegávamos a levar 5 a 7 horas a faze-las, sabe-me lindamente não ter essas preocupações, a não ser a nível muito limitado. Passei a pasta....
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